O presidente e o embaixador

A menos de um mês do final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o WikiLeaks publica uma série de telegramas que revelam como o presidente e figuras-chave do seu governo eram descritos pela diplomacia americana.

Lula nunca foi mal visto pelos embaixadores – foram quatro durante seu governo –, embora a política externa fosse olhada com desconfiança. Mas, pessoalmente, ele foi descrito muitas vezes com surpresa, suas quebras de protocolo devidamente registradas e a sua equipe devidamente estudada.

Logo no primeiro contato, o senador Aloizio Mercadante foi descrito como “radical”, enquanto José Dirceu, que viria a ser ministro da Casa Civil, seria mais “discreto”. Já o ex-ministro da Economia, Antonio Palocci seria “uma voz para acalmar os mercados”.

Os telegramas também mostram que, se os embaixadores viam o Itamaraty como adversário, Lula reclamava do Departamento de Estado como um obstáculo para uma boa relação com o presidente Bush.

Primeiro contato

Na primeira reunião com oficiais americanos, no dia 21 e novembro de 2002, Lula, “animado, elegante e descansado”, teria dito logo de cara que queria ter uma boa relação com Bush: “Acho que dois políticos como nós vamos nos entender quando nos encontrarmos frente a frente”. Dois anos depois, ele voltaria a elogiar o presidente Bush, agradecendo “calorosamente” por sempre ter sido tratado com respeito e gentileza pelo americano.

Mas o telegrama sobre a primeira impressão americana, de novembro de 2002  relata tambem uma gafe presidencial, talvez a primeira. O presidente teria afirmado querer mudar a percepção que os oficiais brasileiros são “um bando de ladrões irresponsáveis” e de que “o Brasil é outra Colômbia”.

A frase teria sido proferida na reunião entre o que viria a ser o núcleo duro do governo com o subsecretário de estado americano Otto Reich – um encontro descrito como “caloroso e produtivo”.

Nele, Dirceu, Palocci e Mercadante defenderam a prioridade aos parceiros do Mercosur. Segundo o telegrama, Dirceu chegou a interromper Mercadante para dizer que as negociações bilaterias são importantes “mas teriam que ser feitas dentro dos compromissos regionais do Brasil”.

Reich ainda tentou tirar satisfação sobre a participação de Mercadante no Foro de São Paulo – uma coalizão de partidos de equerda latinoamericanos – irritado com o fato de que havia ali líderes das Farc e do governo cubano.

Mercadante respondeu que muitos dos participantes do Fórum são “esquerdistas antiquados” e que poderiam aprender muito com o PT, cujo foco seria “defender a democracia”. Foi a deixa para Reich falar de violações de direitos humanos em Cuba, ao que Dirceu rebateu. “Nós vamos simplesmente ter que concordar em discordar”.

No final, Reich é taxativo: “Nós não temos medo do PT e da sua agenda social”.

No telegrama enviado ao Departamento de Estado, ele descreveu os três políticos como tendo “personalidades complementares e contrastantes”.

O radicalismo antigo de Mercadante não está muito longe da superfície. Ele fala para convencer mais do que para explicar, frequentemente apontando o dedo para seu interlocutor. Mesmo assim é cortês e claramente focado em projetos bilaterias específicos”.

Dirceu é muito mais discreto. Nunca corrigiu Mercadante mas algumas vezes o interrompia para qualificar suas observações. Ele parece ser o ‘primeiro entre iguais’”.

Palocci, cuja estrela ascendeu rapidamente nos últimos meses, é talvez o mais pragmático do grupo. Ele fala devagar e com calma – geralmente sobre temas econômicos – claramente consciente do efeito das suas palavras. É uma voz aparentemente designada para acalmar os mercados”.

Segundo mandato

Em outubro de 2006, o futuro embaixador Clifford Sobel e os conselheiros políticos da embaixada presenciaram outro momento histórico.

Era dia 30 de outubro, o dia seguinte à reeleição, e eles visitaram o Palácio do Planalto, onde detectaram um clima de “jubilante celebração”, segundo um telegrama secreto enviado às 17:51 horas do dia 1 de novembro.

Uma fileira de VIPs fluíam pelo palácio para ter audiências com o presidente reeleito”, prossegue Sobel.

Os americanos encontraram o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho “aliviado” e “nas alturas”. Carvalho afirmou a eles uma frase que seria um mantra nos encontros com a diplomacia americana: apesar de ter buscado ampliar as alianças no primeiro mandato, a prioridade seria relações com os parceiros tradicionais, como os EUA.

Mas o embaixador não deixou barato, reclamando que “certos” membros do governo falavam que o Brasil precisava “countrabalancear” o poder americano. Carvalho concordou enfaticamente, disse que não se falaria mais nisso – e ainda pediu a compreensão pela retórica usada durante a campanha eleitoral.

Sobel também encontrou com o general Jorge Armando Felix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e o ministro do Desenvolvimento e Indústria Luiz Furlan – ambos, na visão da diplomacia americana, aliados que sempre brigaram por mais proximidade com o país. Mas conclui seu telegrama com uma crítica ao Itamaraty, o que seria a sua marca à frente da embaixada.

Nossos interlocutores do alto escalão estavam de muito bom humor ontem, com palavras gentis para todo o mundo, inclusive para os EUA. Mas sem grandes mudanças no alto escalão e na orientação do ministério das relações exteriores duvidamos sobre a viabilidade de uma mudança favorável aos EUA e ao mundo desenvolvido em vez da prioridade sul-sul do primeiro mandato de Lula”.

O Departamento de Estado, outro desafeto

Clifford Sobel se apresentou formalmente como embaixador no dia 7 de novembro de 2006. E já chegou reclamando. No telegrama enviado no dia seguinte, explicou que a cerimônia foi atrasada pela campanha eleitoral, sendo que ele estava no Brasil desde agosto. Mesmo assim, a reunião com Lula teria sido “positiva” e com uma “atmosfera calorosa”.

Lula conversou com Sobel e seus assessores junto com o chanceler Celso Amorim e o assessor especial Marco Aurélio Garcia. Defendeu uma parceria sobre etanol e ganhou como resposta um inusitado presente: uma foto autografada por Bush do encontro do G-8 ocorrido em São Petesburgo, na Rússia, em julho.

No final, Sobel voltou a mostrar desconfiança com as palavras doces do governo brasileiro: “nós vamos continuar esperando para ver, atentos para outros desenvolvimentos que podem indicar se essa ofensiva charmosa se traduz em uma mudança significativa na política externa”.

Como já demonstraram outros telegramas publicados pelo WikiLeaks, o embaixador – que jamais conseguiu dominar o português – a continuou esperando até o fim.

Embora os EUA continuem sendo um forte parceiro comercial e Sobel tenha chegado a comemorar em entrevista à revista Veja um estrondoso aumento dos investimentos brasileiros no país, a dinâmica do comércio exterior brasileiro mudou e a China chegou a substitui-lo como principal parceiro comercial em 2008.

No dia 27 de julho de 2009, Sobel se despediu do país. Na ocasião, ele enviou um colorido telegrama a Washington narrando o último encontro com Lula.

“Essa conversa final permitiu um insight singular sobre a complexidade e a tensão no pensamento de Lula sobre as relações exteriores. Caloroso, pessoal, e sedutor no começo e no final da reunião, ele fez um monólogo intenso e quase agressivo no meio da conversa”, diz.

Para Sobel, o fato de Lula ter reclamado das dificuldades com o Mercosul – em especial do presidente boliviano Evo Morales, que acusara Washington de tramar o golpe em Honduras – era uma boa nova. O embaixador via isso como um sinal de que Lula queria se aproximar dos EUA para solidificar seu papel no continente.

Nesse sentido, relatou ele, o presidente reclamou da proibição do governo americano à venda dos aviões super Tucanos à Venezuela.

“O Brasil precisa das ferramentas para poder lidar com seus vizinhos, disse Lula. Se a Bolívia que comprar Super Tucanos, Lula tem que poder vender. O Brasil não pode arcar com esse tipo de vexame ao não poder vender Super Tucanos à Venezuela”.

Para Sobel, “o Mercosul chegou aos seus limites como mecanismo de integração”. Ele escreveu que após a cúpula do Mercosul em julho, “a tensão era palpável” e Lula estaria “perturbado”.

Ele acredita que os Estados Unidos ainda têm problemas significativos com sua imagem e relacionamento no hemisfério mas que o presidente Obama pode superar esses problemas”.

Lula também teria criticado a burocracia do governo americano, que não teria ajudado nas relações bilaterais – assim como Sobel tantas vezes criticou o Itamaraty.

Apesar de ter uma boa relação com Bush, Lula afirmou que “nunca conseguiu trazer o Departamento de Estado para essa relação”.

O seu foco nos líderes Morales, Sarkozy, Obama e a sua visão negativa da burocracia são uma demonstração clara da importância que Lula dá às relações pessoais da conduta da política externa”, observa Sobel.

O embaixador de Obama

Somente em 9 de fevereiro de 2010 o atual embaixador, Thomas Shannon, se apresentou formalmente ao presidente Lula. Nesse encontro, Lula avisou que iria visitar o Irã em maio com o objetivo de “abaixar a temperatura” sobre a questão iraniana – uma versão muito diferente do que foi retratado pela imprensa.

Lula, “saudável depois de uma crise de hipertensão”, mais uma vez estendeu a reunião por muito mais tempo que o combinado, o que foi notado pelo americano. Shannon também relatou a empolgação com a figura de Barack Obama. “Ele vê o engajamento de Obama como crítico para uma nova relação de qualidade não só com o Brasil, ma com a América Latina como um todo”.

O terremoto do Haiti, ocorrido duas semanas antes, também dominou a pauta. “Lula, claramente engajado na questão o Haiti, reforçou a necessidade de colocar a ONU e o governo haitiano no comando dos esforços de reconstrução”.

O presidente teria lamentado que os países ricos usassem a corrupção do governo haitiano como argumento para não dar dinheiro diretamente a ele. Com as ONGs, a coisa seria tanto pior: “A maioria do dinheiro dado através de ONGs vão para pagar salários e despesas para estrangeiros ou funcionários que estão fora do Haiti”, teria dito o presidente brasileiro.

27 Respostas para “O presidente e o embaixador

  1. Pingback: Ao vencedor, as batatas » Natalia Viana: o presidente e o embaixador

  2. Parabéns pela iniciativa… E vida longa ao WikiLeaks!

  3. Matheus Nahkur

    Senhores, prestemos atenção porque estamos assistindo a um capítulo importante da história ser escrito.

    Parabenizo a Natália pelo empenho e coragem, e a CartaCapital pela iniciativa sempre na vanguarda do jornalismo brasileiro.

    Abraços!

  4. Natalia,

    Que artigo fantástico! Excelente este teu novo blog.

    Acredito, contudo, que o primeiro parágrafo do último intertítulo (O embaixador de Obama) esteja com uma referência equivocada de data, não?

  5. Natália, você já conseguiu olhar os documentos que comprovam as remessas de dinheiro da Andrade Gutierrez, da Roseana Sarney e outros nefastos?

  6. Olá,

    gostaria de parabenizar pela iniciativa!, mas, também, perguntar uma coisa:

    no seguinte trecho:

    embaixador de Obama

    Somente em 9 de fevereiro de 2006 o atual embaixador, Thomas Shannon, se apresentou formalmente ao presidente Lula. Nesse encontro, Lula avisou que iria visitar o Irã em maio com o objetivo de “abaixar a temperatura” sobre a questão iraniana – uma versão muito diferente do que foi retratado pela imprensa.

    Não seria fevereiro de 2010?

    abraço,

  7. muito obrigada pela iniciativa, a sociedade precisa disso!

  8. Parabéns pela iniciativa do bog.

  9. Parabéns pelo site, espero que possam continuar trabalhando a favor da liberdade!!!
    Valeu!!!
    ( Vocês tem o meu apoio)

  10. Marcio Tambelli

    Oi Natalia, sabemos que tem muito mais por vir desse mato, mas gostaria de saber como ficou distribuida a responsabilidade pela divulgação dos documentos referentes ao brasil, li uma materia ontem na folha com eles se gabando de serem juntamente com o o jornal O Globo os responsaveis por essa divulgação, mas pelo que eu sabia vc ja estava fazendo essa cobertura para o Opera Mundi, tao te sacaneando ou o que? …………… No mais o Wikileaks é fantastico, ele mostra como se dao as relacoes e negociacoes economicas e politicas de forma clara, os chamados bastidores, e nos bastidores é que as coisas acontecem. Beijos e ansioso por novas leituras

  11. Primeiramente, parabéns pelo trabalho.O RSS não está funcionando, pelo menos, não está com uma cara boa 😀
    Gostaria de republicar os seus posts no Blog Brasil Acadêmico, ou trechos deles. Sei que não é de bom tom. Mas, se por acaso os hackers começarem a atacar ou começarem a pressionar a revista, a hospedagem ou sei lá mais o quê, já teria espalhado a informação pela rede (o que desencorajaria a pressão).

    Acho ótimo essa iniciativa de traduzir e intepretar o conteúdo de tão vasto material, principalmente dando outro enfoque, diferente do que a mídia de massa tradicional já divulgou. Assim, sempre teremos o contraponto fundamental para a confrontação dialética. Abraços.

    P.S.: Escrevi um post mostrando resumindo o fenômeno WikiLeaks:

    http://blog.brasilacademico.com/2010/12/wikileaks-o-site-que-desafiou-o-imperio.html

  12. Flávio Nóbrega

    Força, Natalia!

  13. E o 4chan? ‘Os caras’ [não dá pra saber quem, já que todo mundo no forum é anonimo] tão hackeando todo mundo que se posiciona contra o WikiLeaks ou o Julian Assange. De passar trotes pra minas que alegaram ser estupradas até hackear o site do paypal e do mastercard.
    É meio dificil entender o forum, mas com o tempo pega o jeito: http://www.4chan.org/b/

    • Anonymous é realmente engraçado, espero que o movimento consiga atrair mais atenção ao caso.
      Depois da guerra contínua contra a Igreja da Cientologia, agora a defesa do WikiLeaks.

      O que eu acho realmente um fenômeno da contemporaneidade é o “porta-voz” do grupo dizer ao Guardian que eles são uma força em prol do “chaotic good”. Ora, isso é um termo do RPG (roleplaying game) Dungeons & Dragons (sim, ligado àquele desenho famoso que aqui saiu como Caverna do Dragão), coisa muito apreciada pelos nerds que rondam o 4chan.org .

      Ser “chaotic good” é ter mania de Robin Hood, e é exatamente isso que Anonymous e a Operation Payback (agora Avenge Assange) está demonstrando. Foi muito inusitado ver o twitter da Operação coordenando ataques aos sites de cartão de crédito, e seus gritos de FIRE FIRE retuitados por tudo que é gente, de jornalistas da mídia oficial a entusiastas da internet livre.

  14. marlene moraes

    Este assunto me despertou um verdadeiro furor! òtima inciativa de traduzir os documentos com tal fidelidade! Inaugura oficialmente um novo tempo de jornalismo! E uma grande lição ao próprio poder mas também a nós comuns mortais, para que se pense num mundo com mais clareza e a busca intensa pela verdade! Que este renovo não se cale, jamais!

  15. muito bom…..seja bem vindo ao Brasil mr. Wikileaks.
    😉
    WEBcidadania

  16. Gustavo Ferroni

    Olá Natália,

    Muito bom! Já começou mandando super bem.

    Você só vai divulgar coisas novas? Ou vai colocar também os telegramas que já saíram na imprensa?

    um abraço

  17. Olá Renato, a Natalia Viana postará, em primeira mão, tanto a reprodução dos comunicados (o que não deixa de ser importante) como análises mais aprofundadas dos documentos. Obrigado.

  18. André Coelho

    Gostei bastante do blog! O Wikileaks está inagurando um novo tipo de jornalismo investigativo, muito mais danoso aos podres poderes que o de outrora.

    A meu ver, esta luta contra o Wikileaks é como a luta das gravadoras contra o Napster. Não tem como conter, daqui a pouco surgirão outros sites hackers divulgando essas informações.

    Parabéns pelo trabalho!

  19. O que deveria haver é uma iniciativa como essa aqui no Brasil. Que tal a Carta Capital publicar um post conclamando os brasileiros que têm informações importantes em mãos a revelarem o conteúdo? Liberdade de expressão e busca constante pelo conhecimento são as únicas armas que temos para lutar pela democracia e pela cidadania!

  20. Como sempre um ótimo trabalho da Carta Capital

  21. O relato do que há nos telegramas vazados referentes ao Brasil, aqui nesse artigo, segue os padrões e cacoetes da velha mídia ao focar-se em fofocas sem interesse.

    Seria mais produtivo se a jornalista se espelhasse no exemplo do The Guardian e oferecesse análises / reportagens / traduções mais precisas.

    • Concordo em gênero, número e grau. Os documentos (ou links) devem ser apresentados para que as interpretações do blog possam ser avaliadas.

    • Achei o texto interessante, apesar de realmente não falar muita coisa importante, acredito que não tenha muito o que se falar do Brasil. Pelo menos não por enquanto.

  22. Oi, Natália, aqui é Carlos Tautz, do Ibase, Rio. Talvez já tenhamos trocado alguns emails na época em que escrevíamos tanto p/ Caros Amigos quanto p/ o Brasil de Fato.

    Por favor, entre em contato com meu email . Tenhos umas questões p/ vc.

    Um abraço, Tautz

  23. Eduardo Santos

    Olá Natalia,

    Parabéns pela inciativa. Deve dar muito trabalho verificar tantos documentos.

    Gostaria apenas de fazer uma observação: os links estão quebrados. Há várias referências no texto a links que devem ser para documentos, mas eles não estão funcionando. Pode dar uma olhada, por favor?

    Parabéns e continue o bom trabalho.

  24. Que massa este blog!! Adorei esta primeira matéria, estou ansiosa para as próximas.

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